sábado, 29 de setembro de 2007

Um trecho de Cira:


Descobri Cira por meio de uma figurinha, dessas para colar em álbuns mal desenhados e com textos incompletos. Figurinhas tinham o valor de dinheiro para as crianças, no tempo em que eu era uma.
Havia três maneiras de se acumular figurinhas: 1) Súplicas aos pais. 2) Trocas (quase) amigáveis. 3) Espólios das disputas de “bafo”. O bafo, para quem não sabe, é um jogo em que os participantes batem, com as palmas das mãos em concha, sobre um monte de figurinhas, levando para casa aquelas que conseguem virar. Foi de uma dessas três maneiras – não lembro qual – que ganhei a figurinha de Cira.
Eu costumava perseguir outros tipos de figurinhas, mas aquela, que fazia parte de um álbum sobre lendas, exerceu um fascínio diferente sobre mim. A figurinha era simples. Não era daquelas autocolantes, que custavam bem mais caro. No verso, lia-se uma descrição da personagem: “Cira. Filha de uma bruxa e do cobra Norato. Diz-se que matou a princesa da grande cidade perdida e libertou os tatus. Em algumas regiões, conta-se que lutou contra um bando de lobisomens e que participou da guerra de Palmares, lutando ao lado de Zumbi”. O desenho era o que mais me atraía, mas não por seu valor artístico, que eu ainda não tinha experiência para avaliar. Mostrava uma mulher de pele muito branca, em trajes feitos de um reluzente couro escamoso, vermelho-escuro. Seus cabelos eram negros e balançavam ao vento. Seus olhos eram tão vívidos, curiosos. Estavam focados em algo fora da cena, desafiadores. Sobre o ombro esquerdo, um detalhe bizarro. Uma caveira.
Com o passar dos anos, ganhei percepção suficiente para concluir que o fascínio da imagem vinha muito mais da força da própria personagem do que da qualidade do ilustrador.
Jamais ganhei nenhuma outra figurinha daquela coleção, porque a editora que a publicou havia falido alguns anos antes. Solitária entre minhas outras figurinhas, aquela acabou se tornando a mais valiosa para mim. Eu a carregava sempre. Puxava-a para dar uma espiada, sorrateiramente, quando queria sentir aquela sensação quente, tão comum em pré-adolescentes. Cresci com aquela imagem e as frações de história que aquela figurinha continha assombrando-me.

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