segunda-feira, 25 de fevereiro de 2008

Arnaldo, o último motorista

Acabou, travou.
Arnaldo estava radiante, naquele começo de tarde. Seu sorriso amarelo – quinze anos fumando – atravessava-lhe a cara, como um teclado de piano velho. Estava recebendo as chaves. As tão aguardadas chaves. Foi nesse instante que as cenas passaram diante de seus olhos. A percepção de que realizara seu sonho. Ou parte dele.
Arnaldo trabalhava, há dois anos, em uma grande empresa de telemarketing. Havia começado como operador e, degrau por degrau, paciente e eficientemente, alcançou uma promoção para o departamento de Recursos Humanos. Lá, como assistente de projetos, fazia de tudo. Desde encomendar e-mails à agência de propaganda fornecedora até a pesquisa e contratação de palestras motivacionais. Trabalhava com prazos apertados. Sempre na correria. Por isso, tinha certeza de que seu trabalho era importante.
Já estava terminando sua pós-graduação. MBA. Estava melhorando o currículo, almejando um cargo de gerência a médio prazo. Sua vida estava detalhadamente planejada. Seus objetivos, focados. Aprendera isso em um livro de auto-ajuda para jovens que queriam evoluir.
E evolução era o que Arnaldo conseguira, naquele começo de tarde. Um de seus objetivos alcançados. Comprara um carro.
Não era um carro zero km. Tinha um ano de uso. Mesmo assim, era uma beleza. Bancos de couro, vidros elétricos, ar condicionado, trava elétrica. Tudo perfeito. Sofia, sua namorada, estava ansiosa. Já ligara para seu celular vinte vezes. Com o entupimento da rede, apenas duas tentativas tiveram sucesso.
Arnaldo virou a chave na ignição.
Era um de seus momentos. Acreditava que muitos outros viriam. Todos aqueles momentos que demonstram a evolução da pessoa. O bom emprego, a companheira bonita e amorosa, a primeira prestação do apartamento, o primeiro carro... Tudo muito bem descritinho, tanto no livro que Arnaldo deixava na cabeceira de sua cama quanto em qualquer anúncio na tevê.
Os documentos estavam no porta-luvas. Tudo direitinho. O motor roncou. Não era daqueles motores populares, um-ponto-zero. Era um dois-ponto-quatro. Engatou a primeira marcha, tirou levemente o pé da embreagem e acelerou. Atravessou a calçada da frente da loja. Não passava de um corredor entre outros carros com os preços pintados de branco nos pára-brisas. Ocupou os últimos três metros de asfalto vago.
Acabou, travou.
Naquele instante, Arnaldo conquistou um objetivo que jamais planejara: entrou para a história. Arnaldo foi o último motorista a ocupar o último pedaço de São Paulo. Houve um outro, depois dele, que ocupou aquele corredorzinho na calçada, em frente à loja. Mas não era asfalto. Por isso, a honra de ser o último motorista coube a Arnaldo.
Como todos os seus colegas motoristas, depois de dois dias dormindo dentro do veículo, Arnaldo acabou percebendo que não sairia do lugar.
Quis reaver seu dinheiro. Voltou à loja. Teve de andar sobre os carros que estavam na calçada.
- Pois não, senhor? – atendeu a vendedora.
- Quero devolver o carro e pegar meu dinheiro.
- Algum problema com o carro?
- Claro. Não consigo sair daqui da frente da loja há dois dias!
- Mas essa imobilidade, por acaso, é provocada por algum defeito do carro?
- Como é? – Arnaldo coçava a cabeça. Não a lavava há dois dias.
- Eu quero saber se existe algum problema com o carro. – O tom de voz da vendedora não se alterava.
- Não... quero dizer... não sei. Não andei nada com ele...
A discussão tomou mais umas seis horas da vida de Arnaldo. Saiu da loja ainda mais emputecido e descabelado. E não conseguiu reaver seu dinheiro.
Foi para casa como todos os outros colegas motoristas: andando sobre os capôs dos carros parados.

3 comentários:

Anônimo disse...

Achei meio estranho. Ao andar pelas ruas, ele já veria que não havia mais lugar. Então porque foi lá e comprou?

O raciocínio está legal mas achei o final confuso. Se ele sabia e comprou só por status, para seguir o padrão comportamental, então por que quis devolver o dinheiro?

Walter Tierno disse...

Estamos tentando dar lógica a um padrão que, de saída, não tem lógica nenhuma?
A falta de visão prática, perspectiva mínima do espaço ao redor, baixíssima consciência social, consumismo extremo, tradição inquestionada... Esses são os pontos importantes. Essas são as explicações.
Isso é ficção. Absurdos e extremos são metáforas. Se estivéssemos falando da realidade, Arnaldo faria muitas coisas diferentes. Ele teria comprado uma pickup com rodas gigantes para andar sobre os outros carros...

Anônimo disse...

Se você diz...