Acabou, travou.
Arnaldo estava radiante, naquele começo de tarde. Seu sorriso amarelo – quinze anos fumando – atravessava-lhe a cara, como um teclado de piano velho. Estava recebendo as chaves. As tão aguardadas chaves. Foi nesse instante que as cenas passaram diante de seus olhos. A percepção de que realizara seu sonho. Ou parte dele.
Arnaldo trabalhava, há dois anos, em uma grande empresa de telemarketing. Havia começado como operador e, degrau por degrau, paciente e eficientemente, alcançou uma promoção para o departamento de Recursos Humanos. Lá, como assistente de projetos, fazia de tudo. Desde encomendar e-mails à agência de propaganda fornecedora até a pesquisa e contratação de palestras motivacionais. Trabalhava com prazos apertados. Sempre na correria. Por isso, tinha certeza de que seu trabalho era importante.
Já estava terminando sua pós-graduação. MBA. Estava melhorando o currículo, almejando um cargo de gerência a médio prazo. Sua vida estava detalhadamente planejada. Seus objetivos, focados. Aprendera isso em um livro de auto-ajuda para jovens que queriam evoluir.
E evolução era o que Arnaldo conseguira, naquele começo de tarde. Um de seus objetivos alcançados. Comprara um carro.
Não era um carro zero km. Tinha um ano de uso. Mesmo assim, era uma beleza. Bancos de couro, vidros elétricos, ar condicionado, trava elétrica. Tudo perfeito. Sofia, sua namorada, estava ansiosa. Já ligara para seu celular vinte vezes. Com o entupimento da rede, apenas duas tentativas tiveram sucesso.
Arnaldo virou a chave na ignição.
Era um de seus momentos. Acreditava que muitos outros viriam. Todos aqueles momentos que demonstram a evolução da pessoa. O bom emprego, a companheira bonita e amorosa, a primeira prestação do apartamento, o primeiro carro... Tudo muito bem descritinho, tanto no livro que Arnaldo deixava na cabeceira de sua cama quanto em qualquer anúncio na tevê.
Os documentos estavam no porta-luvas. Tudo direitinho. O motor roncou. Não era daqueles motores populares, um-ponto-zero. Era um dois-ponto-quatro. Engatou a primeira marcha, tirou levemente o pé da embreagem e acelerou. Atravessou a calçada da frente da loja. Não passava de um corredor entre outros carros com os preços pintados de branco nos pára-brisas. Ocupou os últimos três metros de asfalto vago.
Acabou, travou.
Naquele instante, Arnaldo conquistou um objetivo que jamais planejara: entrou para a história. Arnaldo foi o último motorista a ocupar o último pedaço de São Paulo. Houve um outro, depois dele, que ocupou aquele corredorzinho na calçada, em frente à loja. Mas não era asfalto. Por isso, a honra de ser o último motorista coube a Arnaldo.
Como todos os seus colegas motoristas, depois de dois dias dormindo dentro do veículo, Arnaldo acabou percebendo que não sairia do lugar.
Quis reaver seu dinheiro. Voltou à loja. Teve de andar sobre os carros que estavam na calçada.
- Pois não, senhor? – atendeu a vendedora.
- Quero devolver o carro e pegar meu dinheiro.
- Algum problema com o carro?
- Claro. Não consigo sair daqui da frente da loja há dois dias!
- Mas essa imobilidade, por acaso, é provocada por algum defeito do carro?
- Como é? – Arnaldo coçava a cabeça. Não a lavava há dois dias.
- Eu quero saber se existe algum problema com o carro. – O tom de voz da vendedora não se alterava.
- Não... quero dizer... não sei. Não andei nada com ele...
A discussão tomou mais umas seis horas da vida de Arnaldo. Saiu da loja ainda mais emputecido e descabelado. E não conseguiu reaver seu dinheiro.
Foi para casa como todos os outros colegas motoristas: andando sobre os capôs dos carros parados.
segunda-feira, 25 de fevereiro de 2008
Arnaldo, o último motorista
livros, quadrinhos, cinema, teatro, rock
apocalipse motorizado,
são paulo,
trânsito,
último motorista
sexta-feira, 22 de fevereiro de 2008
Anardeus sabe o que se esconde no coração das pessoas.
Enquanto isso, em uma palestra:
- (...) porque, nesse mundo corporativo globalizado, o upgrade constante vai estar sempre em up. Se o profissional pretende atingir seu target com eficiência, o mainstream tem que ser sempre ali, ok? Sempre ready. O blue ship... Sim, você tem uma pergunta?
-Você vive com vontade de dar a bunda, né não?
- (...) porque, nesse mundo corporativo globalizado, o upgrade constante vai estar sempre em up. Se o profissional pretende atingir seu target com eficiência, o mainstream tem que ser sempre ali, ok? Sempre ready. O blue ship... Sim, você tem uma pergunta?
-Você vive com vontade de dar a bunda, né não?
quinta-feira, 21 de fevereiro de 2008
Campanhas sociais de Anardeus - 1
Suicídio Consciente
Aos suicidas potenciais: já que estão prestando dois favores à humanidade: um, retirar-se da existência e dois, evitar, com isso, que seus genes sejam repassados e quiçá perpetuados, cabe dizer que é mais do que justo que essa contribuição seja feita em sua plenitude.
Suicídios no metrô, em horário de pico, atrapalham os usuários. Trabalhadores cansados que só querem chegar em casa para encher o rabo de cerveja, assistir à novela e espancar a esposa não precisam de mais essa preocupação.
Suicídios em carros, andando na contramão, a 150 km/h, tentando acertar qualquer veículo também não são produtivos. E se, ao invés de um caminhão, você acertar um Polo com o filho de um juiz que está indo passar duas semanas de ócio no Guarujá?
As clássicas, atirar-se do alto de um prédio, enfiar a cabeça no forno e ligar o gás e tiro nos miolos devem ser precedidos das medidas cabíveis de segurança.
No mais... boa sorte.
Aos suicidas potenciais: já que estão prestando dois favores à humanidade: um, retirar-se da existência e dois, evitar, com isso, que seus genes sejam repassados e quiçá perpetuados, cabe dizer que é mais do que justo que essa contribuição seja feita em sua plenitude.
Suicídios no metrô, em horário de pico, atrapalham os usuários. Trabalhadores cansados que só querem chegar em casa para encher o rabo de cerveja, assistir à novela e espancar a esposa não precisam de mais essa preocupação.
Suicídios em carros, andando na contramão, a 150 km/h, tentando acertar qualquer veículo também não são produtivos. E se, ao invés de um caminhão, você acertar um Polo com o filho de um juiz que está indo passar duas semanas de ócio no Guarujá?
As clássicas, atirar-se do alto de um prédio, enfiar a cabeça no forno e ligar o gás e tiro nos miolos devem ser precedidos das medidas cabíveis de segurança.
No mais... boa sorte.
segunda-feira, 4 de fevereiro de 2008
A hora de Josué
A pinga desceu queimando. Caiu no estômago e corroeu mais um bocado da úlcera, mas Josué não sentia. Não distinguia nenhuma sensação. A fome não apertava, a dor não latejava, o prazer não saciava. A fome saciava, a dor apertava e o prazer latejava. Estava bêbado. As mãos suavam. A testa suava. Seu acordeom suava. À sua esquerda Barnabás castigava o bumbo. À direita, Soarez com um triângulo.
O boteco estava cheio, mas as portas estavam abaixadas. Faziam isso para evitar as reclamações dos vizinhos. Todos que permaneciam no bar, àquela hora, eram fregueses constantes. Fiéis.
Barnabás deu três batidas no bumbo para anunciar a próxima música. Josué respirou fundo e comprimiu o instrumento, arrancando um som alegre e malicioso.
Os homens bebiam cerveja e pinga e fumavam cigarros baratos, comprados de camelôs. As mulheres dançavam libidinosas, com coxas e barrigas à mostra.
A música acabou. Josué tomou outro gole. Longo, entorpecente. Olhou o relógio da parede. Não sabia precisar a hora, mas o ponteiro menor havia passado do número 12. Era tudo o que ele precisava saber.
Barnabás bateu o sinal para a próxima música. Josué começou a tocar. Seus dois companheiros não acompanharam, de início. Era uma música que não conheciam. Com esforço, pegaram o ritmo. Ela era forte, agressiva. Barnabás começou a torturar o bumbo com crueldade e força. O triângulo tremia na mão de Soarez.
Os homens e mulheres dançaram. Excitaram-se. Alguns até mesmo se morderam.
Josué suava. Seu rosto transfigurado. Os olhos arregalados, os lábios sem cor, comprimidos, os dentes trincados.
Quando parecia que não havia como incendiar mais a música, Josué começou a cantar.
Sua voz estava rasgada, corrompida pelo álcool e pelo ódio.
Josué estava com muito ódio naquela noite. Tudo em sua vida ia mal. A mulher que deixara no sertão, ele soube por carta, havia se casado com um fazendeiro e mudado para o pantanal, levando seus três filhos. A mulher que arranjara na cidade, essa ele tinha flagrado naquela tarde, esfregando-se com um vizinho seu. Ele matara os dois e, enquanto tocava naquele boteco, os corpos provavelmente estariam começando a gelar e seriam encontrados pelos dois filhos que a moça tinha de um casamento anterior.
Josué sabia que não podia tocar aquela música depois da meia-noite. Ele havia sido avisado. Fora na noite em que pedira os favores do diabo, numa encruzilhada, oferecendo farofa, pinga e fumo.
Mas ele cantou. Queria acabar com tudo e todos.
O tinhoso havia avisado. Aquela música era especial. Transformaria Josué no rei do baião. Mas não depois da meia-noite.
Josué rosnou a poesia. Ela falava de cavalos com narinas em fogo.
O ar do boteco esquentou e do bumbo de Barnabás saía o som de cascos castigando a caatinga.
A poesia falava de bodes comedores de tripas e urubus comedores de olhos.
Os intestinos dos dançarinos dobraram e doeram e eles choraram.
Josué cantou sobre os cangaceiros mortos que vagavam como fantasmas vingadores de injustiças que sofreram e provocaram.
Quatro cavaleiros atravessaram a porta e não sobrou viva alma no boteco. Vestiam calças de couro e chapéus de cangaceiro. Nas mãos, rifles que cuspiam o fogo do inferno. Josué sorriu quando percebeu que sua miséria acabaria. Chorou e implorou quando percebeu que ela estava só começando.
No dia seguinte, o massacre foi anunciado como mais uma chacina. Não havia sinal dos cavaleiros com roupas de cangaceiros. Josué não estava entre os mortos. Apenas seu acordeom. Até hoje, ele é procurado pelo assassinato da mulher e de seu amante.
O boteco estava cheio, mas as portas estavam abaixadas. Faziam isso para evitar as reclamações dos vizinhos. Todos que permaneciam no bar, àquela hora, eram fregueses constantes. Fiéis.
Barnabás deu três batidas no bumbo para anunciar a próxima música. Josué respirou fundo e comprimiu o instrumento, arrancando um som alegre e malicioso.
Os homens bebiam cerveja e pinga e fumavam cigarros baratos, comprados de camelôs. As mulheres dançavam libidinosas, com coxas e barrigas à mostra.
A música acabou. Josué tomou outro gole. Longo, entorpecente. Olhou o relógio da parede. Não sabia precisar a hora, mas o ponteiro menor havia passado do número 12. Era tudo o que ele precisava saber.
Barnabás bateu o sinal para a próxima música. Josué começou a tocar. Seus dois companheiros não acompanharam, de início. Era uma música que não conheciam. Com esforço, pegaram o ritmo. Ela era forte, agressiva. Barnabás começou a torturar o bumbo com crueldade e força. O triângulo tremia na mão de Soarez.
Os homens e mulheres dançaram. Excitaram-se. Alguns até mesmo se morderam.
Josué suava. Seu rosto transfigurado. Os olhos arregalados, os lábios sem cor, comprimidos, os dentes trincados.
Quando parecia que não havia como incendiar mais a música, Josué começou a cantar.
Sua voz estava rasgada, corrompida pelo álcool e pelo ódio.
Josué estava com muito ódio naquela noite. Tudo em sua vida ia mal. A mulher que deixara no sertão, ele soube por carta, havia se casado com um fazendeiro e mudado para o pantanal, levando seus três filhos. A mulher que arranjara na cidade, essa ele tinha flagrado naquela tarde, esfregando-se com um vizinho seu. Ele matara os dois e, enquanto tocava naquele boteco, os corpos provavelmente estariam começando a gelar e seriam encontrados pelos dois filhos que a moça tinha de um casamento anterior.
Josué sabia que não podia tocar aquela música depois da meia-noite. Ele havia sido avisado. Fora na noite em que pedira os favores do diabo, numa encruzilhada, oferecendo farofa, pinga e fumo.
Mas ele cantou. Queria acabar com tudo e todos.
O tinhoso havia avisado. Aquela música era especial. Transformaria Josué no rei do baião. Mas não depois da meia-noite.
Josué rosnou a poesia. Ela falava de cavalos com narinas em fogo.
O ar do boteco esquentou e do bumbo de Barnabás saía o som de cascos castigando a caatinga.
A poesia falava de bodes comedores de tripas e urubus comedores de olhos.
Os intestinos dos dançarinos dobraram e doeram e eles choraram.
Josué cantou sobre os cangaceiros mortos que vagavam como fantasmas vingadores de injustiças que sofreram e provocaram.
Quatro cavaleiros atravessaram a porta e não sobrou viva alma no boteco. Vestiam calças de couro e chapéus de cangaceiro. Nas mãos, rifles que cuspiam o fogo do inferno. Josué sorriu quando percebeu que sua miséria acabaria. Chorou e implorou quando percebeu que ela estava só começando.
No dia seguinte, o massacre foi anunciado como mais uma chacina. Não havia sinal dos cavaleiros com roupas de cangaceiros. Josué não estava entre os mortos. Apenas seu acordeom. Até hoje, ele é procurado pelo assassinato da mulher e de seu amante.
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